Ser escritor é como ter TPC todas as noites para o resto da vida.
Curso de Escrita de Guião - capítulo #8
Continuo a publicação do Curso de Escrita de Guião, que pode ser encontrado no meu site joaonunes.com.
Ser escritor é como ter Trabalhos Para Casa todas as noites para o resto da vida.
- Lawrence Kasdan
Entre a primeira versão de uma ideia, que está apenas na nossa cabeça, e a sua versão final escrita na forma de guião, uma estória pode ser materializada de várias formas, progressivamente mais completas e complexas.
Teremos assim:
a logline
a storyline
a sinopse
o tratamento
o outline
o step outline (ou grelha).
Não é necessário passar por todas estas fases; elas não são necessariamente sequenciais, e escrever umas, outras, todas, ou nenhumas vai depender da natureza do projeto, das necessidades do produtor e das preferências do argumentista.
Alguns autores irão passar por cada uma destas etapas, outros preferirão saltar diretamente para a escrita do guião final, e a maior parte irá desenvolver pelo menos uma ou duas destas formas intermédias.
Neste capítulo vamos concentrar-nos na primeira delas, a logline.
Uma boa estória também tem o seu período de gestação.
O que é uma logline
No capítulo anterior vimos os elementos essenciais para começar a desenvolver a nossa ideia.
Recapitulando, uma estória clássica precisa de um protagonista ativo e interessante que tem um objetivo claro e relevante e enfrenta obstáculos difíceis para o concretizar.
A logline é apenas a descrição destes três elementos - protagonista, objetivo e obstáculo - num único parágrafo, na forma mais sintética possível.
É o esqueleto essencial da estória, um concentrado do seu potencial dramático fácil de apreender imediatamente.
Vejamos alguns exemplos:
“Melhor é impossível”: um excêntrico escritor novaiorquino (o protagonista) luta contra a sua doença psiquiátrica (o obstáculo) para conquistar o amor de uma garçonete (o objetivo).
"O Fugitivo" - um médico falsamente acusado da morte da mulher (o protagonista) luta contra o relógio para encontrar o verdadeiro culpado (o objetivo) antes de ser capturado pelo polícia incansável que o persegue (o obstáculo).
“Juno”: para garantir uma boa adoção para o seu bebé (o objetivo) uma precoce adolescente grávida (a protagonista) tem de enfrentar a crise do casamento dos pais adotivos (o obstáculo).
“Notting Hill”: um banalíssimo livreiro (o protagonista) apaixona-se pela maior estrela de cinema da atualidade (o objetivo) mas tem de ultrapassar o fosso cavado pela fama dela (o obstáculo).
"Little Miss Sunshine" - para conseguir chegar a tempo a um concurso de beleza infantil (o objetivo) uma família disfuncional (o protagonista) tem de ultrapassar as suas próprias diferenças (o obstáculo).
“O Padrinho”: para garantir a sobrevivência da sua família (o objetivo) o filho mais novo de um mafioso (o protagonista) tem de abandonar os seus sonhos de uma vida honesta (o obstáculo).
"Blade Runner" : num futuro em que humanos artificiais chamados replicantes fazem os trabalhos mais difíceis um ex-polícia desencantado (o protagonista) persegue um bando de replicantes fugitivos (o objetivo) que tiveram treino militar (o obstáculo).
Estas loglines foram escritas por mim, mas não devem andar muito longe das que os seus autores poderão ter escrito, se alguma vez se dedicaram a esse exercício.
Quais são os elementos que podemos reter:
Concisão - nenhum dos exemplos anteriores tem mais de 30 palavras. Em todos eles os três elementos de cada estória são descritos numa única frase, na forma mais sintética e concisa possível. Não devemos incluir demasiados detalhes, enredos secundários, etc. A logline é a essência da nossa estória, destinada a abrir o apetite do leitor .
Enquadramento - em certas estórias pode ser necessário dar um enquadramento da situação inicial, se esta não for óbvia. Por exemplo, "num futuro em que humanos artificiais chamados replicantes fazem os trabalhos mais difíceis".
Ordem variável - a ordem escolhida para apresentar o protagonista, o objetivo e o obstáculo não é importante; deve ser a mais adequada para descrever dramaticamente a estória. O fundamental é que os três elementos estejam presentes, e sejam facilmente identificáveis.
Protagonista único - não é preciso dar um nome ao protagonista, nem descrevê-lo com demasiado pormenor. Normalmente basta usar um substantivo e um ou dois adjectivos bem escolhidos ("um banalíssimo livreiro" ou "uma precoce adolescente grávida") para dar uma ideia do tipo de protagonista. No caso de um grupo de pessoas partilharem o mesmo objectivo e enfrentarem os mesmos obstáculos, podem ser tratados como um único protagonista, como acontece com a "família disfuncional".
Protagonista ativo - devemos descrever de forma ativa, com verbos fortes, o que o protagonista tem de fazer para atingir o seu objectivo ("luta" ou "tem de enfrentar ", "persegue", etc.)
Objetivo claro - na logline devemos descrever o objetivo mais óbvio da nossa estória, que é normalmente o inicial ("persegue um bando de replicantes" ou "chegar a tempo a um concurso de beleza infantil"). Como veremos mais tarde, por vezes o objetivo do protagonista muda ou transforma-se a meio caminho, mas não é importante dar aqui esse tipo de detalhe.
Obstáculo claro - também aqui há que encontrar o obstáculo mais interessante ou dramático, sabendo que no decurso da estória aparecerão certamente muitos outros. Normalmente preferimos obstáculos externos e facilmente materializáveis (como o "treino militar" ou o "polícia incansável" do que internos ou psicológicos. No entanto há casos em que pode ser mais interessante e dramático destacar um obstáculo interno ("o sonho de uma vida honesta" ou "as suas próprias diferenças")
Fim oculto - na logline não é necessário contar como termina a nossa estória, ou seja, se o protagonista consegue ou não alcançar o seu objetivo. Neste sentido, a logline funciona como um aperitivo para a estória, mostrando a sua questão dramática, mas não a resposta.
Conclusão
Uma logline é útil antes, durante ou depois de escrevermos o guião.
No primeiro caso é uma etapa inicial da criação, que nos ajuda a encontrar o essencial da estória; no segundo, serve-nos de bússola de cada vez que nos sentimos perdidos durante a escrita; e no terceiro, quando só a criamos no fim, é uma ferramenta de divulgação e venda (para contar aos amigos ou colocar numa carta de apresentação do nosso guião, por exemplo).
Em qualquer dos casos, se sentirmos dificuldades em sintetizar a nossa ideia numa logline, isso quer dizer uma de duas coisas: ou a nossa estória não se encaixa no modelo clássico (pode ser uma estória multi-protagonistas ou episódica, por exemplo); ou então tem problemas sérios de concepção, que nos deverão merecer uma reflexão profunda.
Exercício
Tomando como base estas considerações, escreva várias loglines para a sua estória, até encontrar a forma mais sintética e eficiente de a resumir em menos de 30 palavras.