Nunca conseguimos deixar de nos identificar com o protagonista.
Curso de Escrita de Guião - capítulo #12:
Continuo a publicação do Curso de Escrita de Guião, que pode ser encontrado no meu site joaonunes.com.
Nunca conseguimos deixar de nos identificar com o protagonista. Está gravado no nosso DNA de espectadores de filmes.
— Roger Ebert
Quem não gostaria de ter escrito um personagem tão fascinante como Michael Corleone, o protagonista dos três filmes da série "O Padrinho" ("O Poderoso Chefão" para os leitores brasileiros.)?
A disponibilidade nas plataformas de streaming permite recordar todas as características que fizeram dos dois primeiros filmes da saga "O Padrinho " duas das maiores obras do cinema mundial.
Entre essas características destaca-se, obviamente, a extraordinária caracterização de Michael Corleone, sublimemente interpretado por um jovem Al Pacino.
É sobre isso que vamos falar hoje.
Michael Corleone, um anti-herói fascinante.
O que torna um protagonista interessante?
Quando começamos a pensar nas características do protagonista do nosso filme, há um primeiro aspecto a ter em consideração: o protagonista é o fio condutor da estória que estamos a presenciar no ecrã, o alter ego dos espectadores no desenrolar daqueles acontecimentos que decidimos contar.
Assim, ele carrega às costas um grande peso - a responsabilidade de manter a audiência interessada na estória, interrogando-se permanentemente sobre o que vai acontecer a seguir.
Para o nosso protagonista estar à altura dessa responsabilidade, e cumprir esse papel na perfeição, ele deve ter algumas (de preferência, várias) destas quatro características:
Ser interessante
Ser ativo
Ser multidimensional
Sofrer uma transformação
Interessante
Em primeiro lugar, o protagonista tem que ser interessante e ter capacidade de atração, ou seja, tem que conseguir estabelecer uma relação emocional com o espectador.
Esta relação manifesta-se através de três formas: admiração, empatia ou fascínio.
Admiração é o que sentimos normalmente pelos heróis tradicionais - o cowboy do chapéu branco, Indiana Jones, John McLane, o Homem Aranha, etc.
É um olhar “de baixo para cima”, dos meros terrestres que nós somos em direção a esses personagens admiráveis.
Os seus objetivos são normalmente à altura das suas capacidades - salvar o mundo (ou uma parte considerável dele), recuperar a Arca perdida, etc.
Empatia, pelo contrário, é um olhar de igual para igual, uma relação que se estabelece entre nós e personagens que têm dramas que nós entendemos perfeitamente.
Podem não ser os nossos dramas, mas nós conseguimos sentir o que eles sentem, sofrer como eles sofrem, celebrar quando eles celebram.
Eu nunca fui uma adolescente grávida, mas consigo perceber o que vai na alma, no coração e na cabeça de Juno. De certa forma, ela é minha igual.
Fascínio, finalmente, é a relação que estabelecemos com protagonistas que não são propriamente heróis tradicionais, mas cujo carisma, ou inteligência, ou capacidade de decisão, ou outra característica qualquer, os tornam invulgarmente interessantes.
São personagens como Hannibal “the cannibal” Lecter, ou o cidadão Kane, ou os heroinómanos de Trainspotting, ou o Michael Corleone de que falávamos no início.
Não gostaríamos de os ter no nosso círculo de amigos, mas com a mediação de uma tela não conseguimos tirar os olhos deles.
Não olhamos para eles de baixo para cima; nem de igual para igual; olhamos à distância, como que através de um telescópio ou microscópio - são formas de vida estranhas, misteriosas.
Não as entendemos mas são fascinantes.
Ativo
Em segundo lugar, um protagonista tem que ser ativo.
Não é necessário que comece a agir desde o primeiro instante da estória (embora isso possa ajudar), mas a partir do momento em que a questão dramática é apresentada, ou seja, em que fica claro qual o seu objetivo, o protagonista deve começar a tomar decisões e a empreender acções no sentido de alcançar essa meta.
Isto justifica-se por duas razões: primeiro, porque em cinema é pelas suas ações e escolhas, concretas e visíveis, que os personagens revelam quem são. Se eles não agirem, não temos forma de os conhecer.
Segundo, porque é pelas reações às ações dos personagens que se definem as forças e dinâmicas em jogo na nossa estória, e se acumula a tensão dramática que se vai libertar no seu clímax.
Um protagonista passivo, ou meramente reativo, não gera suficiente empatia com os espectadores para que o final da estória tenha suficiente poder de catarse emocional.
Multi-dimensional
Um bom protagonista deve também ter dimensão, profundidade.
Não deve ser plano, monocórdico, mas sim ter algumas características inesperadas, por vezes contraditórias, que o enriquecem.
Ninguém é completamente bom, nem completamente mau.
Mesmo quando o nosso protagonista se situa mais claramente num dos lados dessa barreira, pode ter características aparentemente opostas.
Um herói pode ter defeitos, como o medo de cobras de Indiana Jones, ou o chauvinismo de John McLane.
Michael Corleone, apesar de toda a sua frieza e calculismo, é movido pela vontade de defender um bem maior - a sua família.
A jovem Juno, tão madura e decidida em certas coisas, mostra em relação a outras a angústia exagerada de qualquer adolescente.
Uma das coisas que muitas vezes contribui para essa profundidade dos nossos protagonistas é a existência de um fantasma, ou sombra, na sua vida.
É muitas vezes uma falha de caráter, um medo, um trauma, uma incapacidade profunda do personagem, que ele terá de enfrentar e superar para conseguir atingir o seu objetivo.
Arco de transformação
Isto leva-nos a uma última característica - um protagonista interessante tem normalmente um arco de transformação.
As suas características não estão gravadas em pedra, não são imutáveis.
Entre o início e o fim da nossa estória ele vai evoluir, transformar-se, aprender qualquer coisa em relação a si próprio.
Quanto mais profunda for essa transformação, mais ligada estiver aos eventos da estória, e mais contribuir para o seu desfecho, mais satisfatória será a experiência do espectador.
Por muito que a vida nos pareça dizer o contrário, nós gostamos de acreditar que as pessoas podem mudar, e mudar para melhor.
Desenhar o trajeto de um personagem que sofre, aprende com os seus erros, transforma-se e, graças a essa transformação, consegue finalmente atingir o seu objetivo, é uma das fontes de satisfação no trabalho de escrever um guião.
E é uma das formas mais seguras de satisfazer as necessidades emocionais dos espectadores.
Querer X Necessitar
O arco de transformação está muitas vezes ligado a uma dicotomia importante: a distinção entre aquilo que um protagonista quer e aquilo que ele efetivamente necessita.
O que o protagonista quer fica geralmente bem claro e explícito desde o início da estória - é o objetivo material da sua busca, que constitui a questão dramática central.
Mas, muitas vezes, por trás desse objetivo material, há um outro objetivo, mais escondido, de que nem o próprio protagonista suspeita, e que nós só vamos percebendo aos poucos: aquilo que ele realmente necessita para alcançar uma vitória satisfatória.
Clarice, em O Silêncio dos Inocentes, quer capturar o psicopata Buffalo Bill; mas o que ela necessita realmente é de calar as vozes do seu passado, a recordação dos dias que se seguiram à morte do pai, e a sensação de impotência que lhe deixaram.
Conclusão
O protagonista é, normalmente, o motor da nossa estória.
Há, por vezes, variações a esta situação; estórias que são narradas do ponto de vista de outro personagem, ou em que o personagem principal não é quem mais contribui para o avanço da narrativa.
Mas na grande maioria das estórias de modelo clássico de cinema e televisão assistimos a uma coincidência entre protagonista, personagem principal e narrador.
É, pois, essencial, dedicar uma parte muito importante (a mais importante, para muitos autores) do nosso tempo e criatividade à caracterização do nosso protagonista.
Sem esquecer, obviamente, que um bom protagonista não precisa ser um protagonista bom.
Nos próximos capítulos vamos falar dos restantes personagens que compõem o "elenco" de uma estória, com particular destaque para o antagonista.
Exercício
Já sabe quem é o protagonista da sua estória? Aquele personagem que, mais do que qualquer outro, carrega o peso da narrativa?
Quantas das características descritas neste capítulo tem o seu protagonista?
Que outras poderiam ser acrescentadas, se isso fosse vantajoso para a sua estória?