Escrever não é difícil. Basta sentarmo-nos em frente da máquina de escrever, abrir as veias e sangrar.
Curso de Escrita de Guião - capítulo #3
Durante algumas semanas vou partilhar os artigos do meu curso básico de escrita de guião, que está disponível no site joaonunes.com.
Escrever não é difícil. Basta sentarmo-nos em frente da máquina de escrever, abrir as veias e sangrar. - Walter “Red” Smith
Como vimos antes, um guião representa muitas coisas diferentes, para muitas pessoas. Agora está na hora de vermos na prática o que essas pessoas vão encontrar nas suas páginas.
Para isso, o melhor é dar um exemplo de uma cena retirada de um guião real, que foi escrito, financiado, produzido e mostrado ao público.
Um exemplo prático
Fui buscar esta cena à versão final do guião do filme "A Selva" - guião de Izaías Almada e João Nunes, adaptado da obra homónima de Ferreira de Castro.
Pode ver a formatação original baixando o guião, em formato .pdf.
Este exemplo ilustra bem o que podemos encontrar nas páginas de um guião. Em termos da sua situação na história, é uma cena que, de certa forma, marca o final do 1º ato do filme (mais tarde saberemos o que é isso dos “atos”).
Para situarmos a cena no contexto da história, basta saber que Alberto é um jovem monárquico refugiado no Brasil depois da instauração da República em Portugal. De Belém, onde vivia à conta de um tio, viaja até um seringal no meio da Amazónia.
Aí descobre à sua espera a labuta difícil e perigosa dos operários da borracha - os seringueiros. Antes de iniciar o trajecto na selva até ao acampamento onde vai trabalhar com o seu novo companheiro Firmino Alberto cruza olhares com D. Yáyá, uma linda mulher com quem mais tarde terá um caso amoroso.
Os componentes do guião
A cena escolhida para este exemplo, que no guião tem o número 39, constitui uma pequena unidade de acção dramática independente, no tempo e local em que decorre, das cenas imediatamente anteriores e posteriores.
Tal como as outras cenas, está organizada segundo uma determinada lógica e contém alguns elementos característicos da escrita de guiões, formatados de uma maneira própria.
O cabeçalho
Em primeiro lugar tem um cabeçalho individual, que indica tratar-se de uma cena de exterior - EXT. -, que decorre num determinado local - RUA DO ARMAZÉM - e que se passa numa certa altura - DIA.
Exemplo:
EXT. RUA DO ARMAZÉM - DIA
Estas indicações ajudam o leitor da história a ir compreendendo os seus sucessivos passos e, sobretudo, são essenciais para quem vai orçamentar e planificar a produção do filme.
As descrições/ação
Ao cabeçalho segue-se sempre uma descrição da situação e das ações dos personagens envolvidos na cena. Esta pode ocupar um ou vários parágrafos e deve ser o mais clara possível, mas também envolvente e evocativa.
Exemplo:
...um caminho cujo começo mal se percebe, rasgando uma selva imponente, imensa, perigosa.
Estas descrições têm de limitar-se ao que é possível ver ou ouvir.
Devemos evitar todas as introspecções que tentem explicar o que vai na cabeça dos personagens. Esse recurso à introspecção, que faz a riqueza da literatura, só pode ser usado em cinema recorrendo a uma voz sobreposta ou a outros truques do género.
Essas técnicas por vezes funcionam, mas normalmente são apenas muletas para um guião coxo que não nos consegue fazer entender os personagens de outra forma.
Os personagens
Num guião os personagens são definidos pelo que fazem e dizem, não pelo que pensam, imaginam, sonham ou temem.
Assim, como regra geral, devemos limitar-nos a descrever apenas aquilo que pode ser gravado e filmado.
Quando um personagem aparece pela primeira vez no guião, é importante ser acompanhado de uma breve descrição das suas características.
Exemplo: O guarda-livros e gerente da propriedade, GUERREIRO, sai do armazém. É um homem de 50 anos, magro e um pouco encurvado, vestido com sobriedade.
Além disso, sempre que um personagem é introduzido pela primeira vez no guião, o seu nome deve também ser escrito em maiúsculas.
Note-se que o mais normal é capitalizar os nomes apenas da primeira vez que aparecem no guião, mas há quem o faça em cada cena em que aparecem. Eu era adepto desta segunda opção, mas nos guiões mais recentes mudei para a primeira, que tecnicamente é mais correta.
Exemplo:
ALBERTO e FIRMINO, no exterior do armazém...
Finalmente, o nome do personagem que fala aparece sempre destacado antes das suas falas, de forma a identificar sem engano quem diz o quê.
Os diálogos
Além da descrição das acções e acontecimentos de uma cena, é fundamental escrever os diálogos dos personagens que nela intervêm.
Como se pode ver no exemplo, isso faz-se destacando o nome do personagem num parágrafo à parte, mais recuado e em maiúsculas, seguido por um bloco de texto com a sua fala.
Exemplo:
ALBERTO
E uma bela mulher, por sinal.
Os diálogos podem suceder-se, intercalando um personagem com outro, ou podem ser interrompidos por novos parágrafos de descrição da acção, quando assim se justifique.
Parênteses
A fala de um personagem também pode ser antecedida por ou intercalada com comentários entre parênteses. Estes, contudo, devem ser usados com moderação, e só quando não haja outra maneira de passar a mesma informação.
Exemplo:
(começando a andar)
"A Selva" - guião de Izaías Almada e João Nunes, adaptado da obra homónima de Ferreira de Castro
As transições
Finalmente, as transições são instruções escritas no fim da cena, onde se indica a forma de passar para a cena seguinte. Por exemplo, CORTA PARA:, DISSOLVE ou FADE OUT.
Hoje em dia é normal o guionista não se preocupar com a indicação das transições, a não ser que queira sugerir um determinado efeito de montagem. Mesmo nesse caso, a decisão final sobre a transição a usar será sempre da responsabilidade do realizador e do editor do filme.
No caso concreto desta cena, eu acrescentei a transição apenas para efeitos do exemplo, porque no guião original ela nem sequer está lá.
Há outra razão para evitar as transições - roubam muito espaço. Num guião muito extenso, com muitas cenas (como era o caso deste) poupam-se algumas páginas se não se colocarem essas indicações. O filme não fica mais curto, mas parece.
Outras indicações
Olhando para o exemplo apresentado, podemos ver que algumas palavras aparecem em maiúsculas: SACO DE SERAPILHEIRA e MALA DE COURO.
São indicações destinadas a chamar a atenção do leitor (e dos técnicos da equipa de produção) para algum elemento considerado especialmente importante. É o caso, por exemplo, de adereços especiais, como aqui, e também de sons, efeitos especiais, veículos de cena, etc.
Uma vez mais, é um recurso para usar com moderação - se tudo for importante, tudo deixa de o ser.
Podemos também ver que nesta cena não há nenhuma indicação técnica de realização.
Os guionistas principiantes costumam pecar por encher as suas descrições com expressões como zooms, panorâmicas, close ups e outros termos técnicos. Mas hoje considera-se desnecessário dar indicações concretas sobre movimentos de câmara, efeitos de lentes, etc.
Além dessas opções serem da responsabilidade do realizador e do diretor de fotografia, a sua inclusão no guião torna-o mais complicado e aborrecido de ler.
Agora que já temos uma ideia um pouco mais concreta do que é um guião/argumento/roteiro, podemos passar a analisar o processo da sua criação. E tudo começa com uma ideia, como poderemos ver no próximo capítulo. Mas, antes disso, sugiro-lhe um pequeno...
Exercício
É impossível escrever bons guiões sem ter lido pelo menos alguns exemplos de qualidade.
Por isso, procure na internet o guião de um filme que tenha sido produzido.
Pode começar, por exemplo, com o excelente guião de “Os Espíritos de Inisherin”, que pode encontrar aqui.
Leia-o tomando em atenção os aspectos acima descritos. Se conseguir arranjar o DVD desse filme, ainda melhor. Tente identificar as cenas do guião com as do filme, e ver as diferenças.